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quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Schneider à beira-mar - Schneider

            1. Ele saiu por volta das três da madrugada, achou um bar aberto, entrou e pediu uma cerveja ao homem do outro lado do balcão. Seu senso de verdade e humanidade estavam confusos. Isso porque, nos últimos dois dias, passou pelo inferno de perto: descobriu-se portador de depressão (embora ele já sabia disso e só não queria admitir) e, ao mesmo tempo, teve uma crise de identidade: ele é cristão e tem vício em pornografia. Sentia-se contraditório e perdido, e não suportando mais, decidiu sair na madrugada em busca de silêncio para alma. Sendo o único cliente naquele momento se permitiu pedir uma música. Escolheu “Shy” do Sonata Arctica (pelo menos era o que parecia em meio aos tons menores tristes e gostosos da música). Essa música fala aos corações...
            O simples começar da música não lhe aquietou o coração, mas o fez refletir. Sua mente pensava em como chegara a tal estado... Um jovem, 23 anos, nascido no melhor dos mundo, com todas as regalias possíveis. Um prodígio de seu tempo, exímio pianista e piedoso... Que um dia, numa tarde solitária, adentrou no que não lhe convinha (podemos até pensar: “comeu do fruto que lhe fora dito para não comer”) e desse estado não mais saiu. Toda a construção ruiu – melhor dizer: vem ruindo desde aquele dia. Seus impulsos passaram de momentâneos a correntes ligadas a sua coluna vertebral. Ele é arrastado pelo seu desejo como um animal de savana capturado para um circo. Comparação muito forte? Absolutamente; ambos são parecidos: perderam sua liberdade e foram capturados pela curiosidade. Enfim, no momento uma questão perpassa todos esses fatos revisitados pela sua psique entorpecida: “quando foi que eu me perdi”.
            A música termina e o pensamento continua a lhe incomodar. Decidiu partir para algo mais forte, pediu indicações ao barman. Este lhe trouxe o ouro da casa, Utopias, alertando para seu alto valor. Ele toma, sente, começa a perder da consciência e assim, adentrou no vazio. Não sabia o que fazer nem por onde ir. Se retirou do bar. Sabia de sua morte eminente. Intuitivamente, entrou no primeiro taxi que viu e disse ao motorista (e a si mesmo) que não podia mais voltar atrás e que muitos iriam chorar pela sua partida. Esperou mais uns quinze minutos - se aproximava a vigésima terceira hora - e partiu. Uma lágrima caiu em seu rosto e as nuvens como que leitoras de pensamentos alheios formaram no céu o que significava aquilo tudo: haraquiri. Sim, não se sabe para onde ele teria ido, todavia soube-se posteriormente: ele já não sentia mais sua consciência e sim mecanicismo; não estava ali há muito tempo e decidiu se encontrar - se encontrando poderia demonstrar o seu adeus a existência, contra qual não poderia lutar naquele momento. E se foi.


            2. Como eu estava dizendo: ele se foi. Seu percurso era como a evolução das personagens de L. Matsumoto (escritor de manga japonês menos famoso; 1938/ atualmente) ou seja, um acontecer que se faz sem nenhuma razão aparente. Se encontrava agora num trem recém inaugurado no triângulo mineiro, o tão famoso Expresso Pharaó 90. Estava em sua cabine, por sorte não dividida, e pensava um pouco no seu destino. Ele saiu da sua terra e iria para o inusitado, que ficaria, segundo suas pesquisas, na fronteira do Brasil com a Guiana Francesa. Para tanto, planejou o melhor caminho para apreciar e dar tempo para si mesmo aceitar o que estava por acontecer: ou o sucesso de sua empreitada ou o seu fracasso existência – caso acontecesse, seria consumado com o tal suicídio. 
            O trem era de tom azul petróleo. A conservação lhe imprimia um aspecto ainda mais agradável e seu interior (contando com quinze vagões) não ficava atrás. Possuía dois restaurantes e cinco vagões eram destinados às cabines (ao todo vinte e cinco cabines). Confortáveis e bem aparelhadas. Chega a ser irônico que o lugar historicamente tido como berço do principal apoiador do transporte individualista tenha posto em funcionamento tamanha obra de arte do transporte público coletivo. Ele ao embarcar verificou os pertences: uma mala de carrinho e uma sacola de livros que comprara na estação. A tal sacola continha duas obras somente: "Kafka on the shore", de Murakami, e “Ulisses”, de James Joyce – deles este era o que mais queria ler, inclusive. Estava ouvindo música de maneira discreta. Um fone de ouvido passava por dentro de sua blusa e, quase num mundo paralelo por conta do isolamento do próprio fone, escutava alguma canção triste na voz da Dione Warwick, dentre outras músicas (numa mistura do estilos jazz, clássico e j-metal). Então, sentado a janela fechou os olhos e ao pensar no que deixou para trás, chorou. Em seguida, lembrou-se do seu objetivo, redescobrir-se, mas isso não o fez parar de chorar. Buscava respostas sobre si e só na fronteira elas poderiam ser encontradas. Começou a ler Ulisses e seu choro cessou. Um guarda bateu em sua porta para checagem do bilhete e, ao final de tudo, informou sobre o trajeto, desejando boa viagem, e se despediu. Seriam 8 dias de viagem. Ao se dar conta da informação, pegou uma caneta vermelha de sua mala e escreveu nos braços "I" (equivalente a um dia) e registrou seu novo livro com data e local, assinando ao fim com o nome que escolheu para si mesmo: Schneider. Voltou à leitura; voltou a chorar discretamente. 
 
 
Schneider (nome fictício) é graduando em História pela UFF

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