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sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Under the Skin - Beatriz Reis

É curioso o fato de ter sido pena o primeiro sentimento humano que a personagem de “Under the skin” (2013, Jonathan Glazer), interpretada por Scarlett Johansson, sente – ou que pensa sentir, ou que nós pensamos que ela sente. Isso porque a pena, não sendo nem de longe o sentimento mais incômodo – basta que pensemos no amor, que, em determinados momentos, chega a doer – é, sem dúvida, um dos sentimentos mais genuinamente humanos de que consigo me lembrar. Explico:
Tomemos a tristeza como exemplo de comparação. Ela, a tristeza, pode ser pensada como legitimamente “humana” no sentido que nós, humanos, a identificamos como tal (nos sentimos tristes, denominamos uma coisa qualquer de tristeza, etc). No entanto, se pensarmos na tristeza como uma espécie de dor no “espírito”, ou como quer que se chame isto dentro de nós, e levando em conta que corpo e espírito são um tanto indissociáveis, então ela entra na mesma categoria da dor física. E esta, a dor física, é amplamente compreendida por outras espécies dotadas de vida, como os gatos e os canários.
O mesmo pode ser dito da alegria, da revolta, do sofrimento, da coragem, do prazer, e por aí vai. Quero dizer que estes são sentimentos que, por mais que se apresentem inseridos num amplo contexto de relações interpessoais, são realmente egoístas e autocentrados. Identificam-se e atuam sobre um “eu” que sente.
Com a pena, contudo, é diferente. Ela, por mais que se dê como um incômodo no íntimo de alguém, evidencia-se como plena capacidade de identificar-se com as mazelas do outro. O “eu” torna-se medida para um mundo fora de medida e tudo o que não identificamos como parelho a nós mesmos – como inferior a nós mesmos – torna-se digno de pena.
Sentir pena é legitimamente humano (e não faço qualquer juízo de valor quando digo isso), pois, para tal, é preciso que se reconheça no mundo uma ausência total de sentido, a tremenda injustiça – ou será a falta de qualquer dicotomia justiça/injustiça? – que a tudo governa, a plena infelicidade de estar vivo. Cria-se, logo, um distanciamento súbito da vida e do mundo. E, convenhamos, nada é mais humano do que esta falta de contato que sentimos em relação à natureza, ao que não conseguimos ou podemos controlar. A pena é, portanto, uma espécie de aceitação do absurdo da vida (mais ou menos consciente, é bem verdade), resignação com o mundo e percepção do outro como ser castigado pelo destino. Nenhum animal seria capaz de sentir pena, talvez algum tipo de piedade instintual, mas não pena.
A personagem principal, ao sentir pena do jovem deformado, o liberta do cruel destino que o aguarda – ou o condena a um destino ainda mais cruel. Seu gesto de piedade é instintual, como o dos animais, se assemelha ao gesto do tigre, que não come os macacos filhotes por qualquer motivo misterioso (há quem diga que o tigre “sabe” que se comer o macaco filhote, não haverá procriação e, portanto, outros macacos mais), mas a pena – o sentimento que motiva o gesto -, esta é prova incontornável de que ela já é humana, demasiadamente.
Os outros sentimentos, sentidos e assimilados ao longo do filme, por mais complexos que sejam, cumprem função mais a nível egoico: a ajudam na construção de um “eu” mais sólido, capaz de lidar com as próprias sutilezas e com as sutilezas do outro. Mas foi a pena que inaugurou essas duas instâncias de atuação, o “eu” e o “outro”.
Com mais ou menos sucesso, a personagem constrói-se a si, mas seu aspecto “alienígena” a impede de sentir-se completamente humana. Seu corpo, sua pele, é apenas envoltório. Ela continua a ser um alienígena por baixo daquela proteção epidérmica. E todos aqueles sentimentos – perguntam-me -, não foram suficientes? Não bastaram para que ela fosse humana?
Eu respondo às questões com outra pergunta: qual é a grande diferença entre eu, você, o jovem deformado e a alienígena atraente? No fim das contas, somos todos seres humanos-pela-metade, incompletos aqui e ali, incapazes de nos sentirmos completamente humanos, de o fazermos numa instância mais profunda do que a pele (ou mesmo na pele ainda, como creio ser o caso do tal jovem deformado). Todos nos unimos nessa incompletude e ela, inteira, é que nos faz humanos. Nesse caso, sim, basta o sentimento. Basta um início de pena, pelo outro, por si. Basta a percepção do início do sentimento, do início do eu e do outro. Ela, a alienígena, era mesmo humana, pois percebia a si mesma e ao outro. Sentia-se frágil, imperfeita, fora de lugar. Sentia.
Talvez, ser humano seja isso: sentir o incômodo que se aloja em qualquer lugar sob a pele.

“Só depois é que eu ia entender: o que parece falta de sentido – é o sentido” (C.L.)
 
Beatriz Reis é mestranda em Artes Visuais na UFRJ

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